Scott Hahn é um dos autores de espiritualidade e teologia mais lidos da atualidade. A sua conversão ao catolicismo, há quase 40 anos, quando era pastor protestante, marcou um ponto de viragem na sua vida e faria com que todo o seu estudo e reflexão anteriores ganhassem um novo e pleno significado no seio da Igreja Católica, permitindo-lhe construir pontes entre diferentes tradições cristãs. Teólogo bíblico e apologista católico de renome internacional, Hahn é professor de Teologia Bíblica e Nova Evangelização na Universidade Franciscana de SteubenvilleOhio (EUA). O seu profundo conhecimento das Escrituras e a sua capacidade de transmitir verdades teológicas complexas de uma forma acessível são duas das suas principais caraterísticas, tanto no seu ensino como nos seus muitos livros, incluindo títulos como Roma, doce lar, A Ceia do Cordeiro, Compreender as Escrituras o Breve guia de leitura da Bíblia.
Durante uma recente visita a Roma para um curso na Pontifícia Universidade da Santa Cruz sobre "Santidade nas Escrituras", Omnes teve a oportunidade de o entrevistar. Nesta conversa, Hahn partilha reflexões fundamentais sobre a importância da Bíblia na vida dos católicos, sublinhando que "A ignorância das Escrituras é a ignorância de Cristo".. Sublinha a ligação intrínseca entre a Sagrada Escritura e a liturgia, explicando como o Novo Testamento foi primeiro um sacramento antes de se tornar um documento.
O teólogo americano também aborda o diálogo ecuménico, observando que católicos e protestantes partilham mais semelhanças do que diferenças, e oferece ideias sobre a forma como os católicos podem redescobrir práticas como a oração conversacional e a leitura diária da Bíblia. Os seus pontos de vista sobre a Eucaristia como presença real de Cristo e o seu apelo a uma "Espanto eucarístico reflectem a profundidade da sua fé e o seu compromisso com o ensino apostólico.
Qual é o papel fundamental da Bíblia para um católico e como podemos aprofundar a nossa compreensão e vivência quotidiana da mesma?
-Considero muito importante que todos os católicos compreendam a verdade expressa por S. Jerónimo: "A ignorância das Escrituras é a ignorância de Cristo".. Queremos conhecer Cristo, segui-Lo e submeter as nossas vidas, o nosso trabalho e a nossa família ao Seu senhorio. Mas como é que o podemos fazer se não O conhecermos através da Sua Palavra?
A Bíblia é vasta, 73 livros no total. Dediquei a minha vida, tanto a nível profissional como pessoal, a estudá-la com paixão. Sei que pode parecer demasiado grande, que não é fácil. Por isso, encorajo as pessoas a lerem os Evangelhos todos os dias, mesmo que seja apenas um capítulo ou meio capítulo. Conheçam o Senhor Jesus Cristo de uma forma pessoal; isso não só guiará a vossa oração, mas também iluminará o vosso casamento, a vossa família, as vossas amizades e o vosso trabalho.
Eu diria o seguinte: quando os católicos começam a ler as Escrituras, descobrem uma graça extraordinária e verdadeiramente prática. Posso também partilhar que, quando estava a pensar na minha conversão ao catolicismo, fiz amizade com um professor de ciências políticas.
Descobri que estava a usar um Novo Testamento no bolso de trás e perguntou-lhe: "Porque é que faz isso? Ele respondeu: "Ser capaz de ler os Evangelhos e também as cartas de Paulo". Curioso, perguntei-lhe onde o tinha aprendido. Disse-me que no seu trabalho, no Opus Dei. Pedi-lhe que me dissesse mais. Quando me explicou que São Josemaria Escrivá não só lia os Evangelhos, mas incentivava os outros a fazê-lo - não só o clero ou os professores, mas também os trabalhadores comuns - percebi: "... eu não estava só a ler os Evangelhos, eu também estava a ler os Evangelhos.Ao converter-me ao catolicismo, descobri que há uma tribo em Israel que é a minha tribo, que é o Opus Dei".
Qual é a importância da relação entre a Bíblia e a liturgia, e como é que esta relação nos pode ajudar a viver uma fé mais profunda nas nossas celebrações eucarísticas?
-Quando estudei a Escritura na universidade e, mais tarde, nos meus estudos de doutoramento, descobri algo fascinante: a Sagrada Escritura, ou a Bíblia, como lhe chamamos, é de facto um documento litúrgico. Desde o início, foi compilada para ser lida na liturgia.
Lendo-o com atenção, apercebemo-nos de que ele nos remete sempre para o culto, para o sacrifício, para os sacerdotes que conduzem o povo de Deus, um povo cuja verdadeira identidade é ser a sua família. Ao aprofundar a leitura, apercebi-me de algo chocante: eu, sendo um pastor protestante, evangélico e presbiteriano, queria ser um cristão do Novo Testamento. Mas, ao estudá-lo, descobri que Jesus usa a expressão "Novo Testamento" apenas uma vez.
E quando é que ele o faz? Não no Sermão da Montanha, mas no cenáculo, na Quinta-feira Santa. Em Lucas 22, 20, toma o cálice e diz "Este cálice é a nova aliança no meu sangue"., kyne diatheke em grego, o Novo Testamento, "que é derramado por vós".. E depois não diz nada: "Escreve isto em memória de mim".mas: "Faz isto em memória de mim".O que é "isto"? Nós chamamos-lhe Eucaristia, mas Ele não lhe chamou isso. O que é que Ele lhe chamou? Novo Testamento, kyne diatheke.
Assim, como protestante evangélico do Novo Testamento, apercebi-me de que "Isto" era um sacramento muito antes de se tornar um documento. E descobri-o no próprio documento. Isso não desvalorizou o texto a que chamamos Novo Testamento, mas revelou-me a sua natureza litúrgica: um sinal que nos remete para o que Jesus instituiu, não só para nos instruir, mas para se dar a si mesmo na Sagrada Eucaristia.
Descobrir que o Novo Testamento foi um sacramento antes de ser um documento não só mostra que o documento está subordinado ao sacramento, mas que a Sagrada Eucaristia ilumina a sua verdade de uma forma que transforma a nossa compreensão. Porque, em última análise, o documento é tão litúrgico como o sacramento. Juntos, estão inseparavelmente ligados.
Como podemos motivar os católicos, especialmente a geração mais jovem, a redescobrir a Bíblia como um guia para a sua vida quotidiana?
-Na América temos um ditado: "A prova do pudim está no ato de comer".. Podemos olhar para ele, mas só saberemos se é bom quando o experimentarmos. Eu diria que o mesmo acontece com a experiência dos católicos: quando começam a ler a Bíblia, especialmente os Evangelhos e os Salmos, descobrem que ela não é apenas um livro.
A Bíblia é uma porta. Uma porta que nos convida a um diálogo mais profundo com o Deus vivo, para nos apercebermos de que Ele nos ama a nós e aos nossos entes queridos mais do que podemos imaginar. Ele quer não só conduzir-nos a um destino que mal podemos conceber, mas também entrar em amizade connosco. É isto que transforma a leitura quotidiana das Escrituras: a oração deixa de ser um monólogo e passa a ser um diálogo.
Também muda a nossa experiência da Missa. Se lermos a Bíblia todos os dias, mesmo que só possamos ir à missa ao domingo, compreenderemos melhor a relação entre o primeiro dia da semana e os outros. Mas, acima de tudo, veremos como o que Jesus disse e fez nessa altura nos fala hoje e nos chama a agir.
Lembro-me de um velho conhecido do liceu. Era católico e agora é protestante evangélico. Ele disse-me: "Não acredito que sejas católico. Antes eras tão anti-católica.. De seguida, perguntou: "Onde é que no Novo Testamento está o Sacrifício da Missa? Eu só vejo o Sacrifício no Calvário; a Missa é apenas uma refeição"..
Respondi-lhe: "Chris, eu também costumava pensar assim. Mas se tivesses estado no Calvário naquela Sexta-feira Santa, não terias visto um sacrifício. Como judeu, saberias que um sacrifício só pode ser feito no templo, num altar, com um sacerdote. O que terias presenciado teria sido uma execução romana"..
A verdadeira questão é: "Como é que uma execução romana foi transformada num sacrifício? E não um sacrifício qualquer, mas o mais sagrado, aquele que pôs fim aos sacrifícios do templo. Chris ficou em silêncio. Depois admitiu: "Não sei.. Respondi-lhe: "Eu também não sabia". Mas quando olhámos para a Eucaristia, a mesma Eucaristia que nós, católicos, celebramos há dois mil anos, tudo fez sentido.
Se a Eucaristia fosse apenas uma refeição, o Calvário seria apenas uma execução. Mas se foi aí que começou o sacrifício da nova Páscoa, tudo faz sentido: não é apenas uma refeição, é o sacrifício. Começou na Quinta-feira Santa e consumou-se no Calvário. No Domingo de Páscoa, Cristo ressuscitou dos mortos, mas os seus discípulos não o reconheceram imediatamente. Os seus corações ardiam quando Ele lhes explicava as Escrituras, mas os seus olhos abriram-se ao partir do pão. É este o mistério pascal.
Para os não católicos, a missa é apenas uma refeição e o Calvário é apenas um sacrifício. Mas sem a Eucaristia, o Calvário parece uma execução. No entanto, se aqui começou o sacrifício, ali ele foi consumado. E então, Cristo ressuscitado, glorificado no céu, oferece o seu próprio corpo por nós e dá-o a nós.
A Bíblia, quando lida regularmente, liga todos estes pontos. Depois, sempre que voltamos à Missa, compreendemos que é o Antigo e o Novo Testamento, a Páscoa, a Eucaristia, a Quinta-feira Santa, a Sexta-feira Santa e o Domingo de Páscoa, tudo em unidade. É por isso que a Igreja chama a cada domingo uma pequena Páscoa: porque tudo se junta. Se conseguirmos que os católicos cheguem a esse ponto - onde a leitura da Bíblia e a participação na Missa revelam a unidade entre documento, sacramento e vida - então tudo se encaixará.
Existem aspectos da vida de fé protestante com os quais, na sua opinião, nós, católicos, poderíamos aprender e aplicar mais na nossa vida espiritual e comunitária?
Partilhamos muito mais do que discordamos com os não católicos, especialmente com os evangélicos e protestantes - como eu era enquanto pastor presbiteriano - bem como com os ortodoxos e os cristãos orientais. É natural que nos concentremos nas diferenças, mas se partíssemos do que nos une, veríamos que a base comum é muito maior: estamos a falar de 80, 85, talvez 90 por cento, incluindo todos os livros do Novo Testamento e o Credo. Se estivéssemos unidos no essencial, poderíamos discutir as nossas diferenças com maior respeito. Ao mesmo tempo, como católicos, poderíamos redescobrir as práticas que agora associamos aos protestantes - como a oração dialogada, a leitura e o estudo da Bíblia - que faziam parte da Igreja primitiva. Tanto o clero como os leigos viviam-nas em pleno.
Muitas das coisas que consideramos "protestantes" provêm, de facto, da tradição católica. E, longe de ver nisso uma disputa, podemos reivindicá-las sem precisar de acusar ninguém, porque, no fim de contas, graças a Deus pelo que eles fazem com o que têm! De facto, eles conseguem muitas vezes fazer mais com menos do que nós com a plenitude da fé.
Dadas as tensões históricas entre católicos e protestantes, como vê o futuro do diálogo ecuménico? Que medidas podem ser tomadas para promover a unidade sem comprometer os princípios doutrinais?
-Esta é uma questão muito importante. Não é fácil de responder, mas temos de a abordar com honestidade intelectual, mesmo que seja um desafio. Nas décadas de 1960, 1970 e 1980, o diálogo ecuménico exprimia frequentemente a fé de uma forma ambígua, a fim de realçar os pontos comuns. Chamo a isso ambiguidade estratégica. Mas quanto mais quisermos avançar no diálogo fraterno - mesmo que não estejamos de acordo em tudo - mais essencial se torna reconhecer o que realmente partilhamos.
Em certas partes do mundo, este diálogo é crucial. Estive em São Paulo no ano passado e vi como o pentecostalismo está a crescer exponencialmente: não estamos a falar de milhares, mas de milhões de católicos que abandonaram a Igreja. Porquê? Porque experimentaram o Espírito Santo, a Sagrada Escritura, a oração e a comunhão. E, perante isto, temos de dar graças a Deus. A força do Espírito e a oração são realidades inegáveis. Não se trata de aprovar tudo ou de rejeitar tudo completamente, mas de reconhecer o que é verdadeiro e de valorizar os pontos comuns.
Este é um apelo a trazer essa experiência de volta às nossas paróquias, lares, vida familiar e oração pessoal. Precisamos de redescobrir o poder do Espírito Santo na nossa própria vida, todos os dias. Não admira que alguns se afastem se não lhes oferecermos o que Cristo lhes quer dar através dos santos, dos sacramentos e da Virgem Maria. É por isso que o diálogo ecuménico não é apenas um desafio teológico, mas também um desafio prático. Convida-nos a reconhecer o que partilhamos e a perguntar-nos: o que podemos fazer para recuperar o que já faz parte da nossa herança e do nosso património de fé?
Como é que nós, católicos, podemos aprofundar ainda mais a nossa compreensão e adoração da Eucaristia, especialmente num contexto cultural que tende a diminuir a sua importância?
Identifico-me muito com esta pergunta. O que mais me impressionou quando era um não-católico a observar as práticas católicas foi o seguinte: eles acreditam que é o Corpo, o Sangue, a Alma e a Divindade de Cristo. Mas como é que pode ser? À primeira vista, parece apenas um pedaço de pão.
No entanto, reflectindo, perguntei-me: poderia Jesus transformá-lo no Seu próprio Corpo? Claro, Ele é suficientemente poderoso; será que nos ama o suficiente para nos alimentar com a Sua própria Carne e Sangue? Sim, faz sentido.
Quando me aprofundei na Bíblia, descobri que os primeiros Padres da Igreja concordavam com a presença real de Cristo na Eucaristia. Isto desafiou-me a acreditar e, pela fé, aceitei que Cristo não só veio em forma humana, mas que também se dá a nós no pão e no vinho como seu Corpo e Sangue. Depois de quase 40 anos como católico, esta verdade ainda me afecta tanto como na altura. É quase demasiado boa para ser verdade. Este é o Corpo, o Sangue, a Alma e a Divindade de Cristo ressuscitado.
Quando eu era protestante, costumávamos cantar Graça maravilhosa (Graça Sublime). Continuamos a cantá-la como católicos, mas hoje apercebo-me de uma coisa: não temos grande admiração pela Eucaristia. Chegamos a tomá-la como um dado adquirido. Mas quando nos apercebemos que ela não é apenas verdadeira, mas que é real, e se é real, é poderosa, e se é poderosa, é bela, compreendemos que não devemos julgar apenas pela aparência. Sim, parece apenas uma hóstia redonda. Mas é o Corpo e o Sangue de Cristo ressuscitado, o Senhor dos Senhores e o Rei dos Reis.
É a verdade. É toda a verdade. É a essência do Evangelho para nós, católicos. Por isso, temos de redescobrir este mistério todos os dias. E não há melhor maneira de o fazer do que visitar uma igreja e ajoelharmo-nos diante do Santíssimo Sacramento. Quer seja no sacrário ou exposto na custódia, este ato recorda-nos que caminhamos pela fé e não pela vista. O que parece ser pão é, na realidade, o próprio Cristo.
Para mim, era isto que São João Paulo II pedia quando falava de "renovar a maravilha eucarística".. Vá lá, é espantoso! Não se trata apenas de uma questão de sentimentos passageiros. Se fôssemos estritamente lógicos, a reação mais razoável à nossa fé na presença real do Senhor dos Senhores e Rei dos Reis seria o espanto. Não ficar maravilhado não é inteiramente racional. Porque ficar maravilhado com a realidade de Cristo na Eucaristia é a consequência natural daquilo que professamos como verdade.
Qual é a sua opinião sobre o estado doutrinal da Igreja Católica atualmente? Num mundo em constante mudança, como pode a Igreja permanecer fiel ao ensinamento apostólico enquanto enfrenta os desafios actuais?
-O maior favor que podemos fazer ao mundo - para levar a graça da conversão e para o amar apaixonadamente - é dizer a verdade. Dizer a verdade com amor, sensibilidade e consciência cultural. Mas dizê-la completamente: toda a verdade, e nada mais do que a verdade. Não para a diluir ou omitir o que pode ser incómodo, mas para ser razoável e sensato, reconhecendo que, em última análise, a tarefa não é nossa, mas do Espírito Santo. Se confiássemos verdadeiramente no Espírito de Deus - o Espírito da verdade que Jesus prometeu - compreenderíamos que é Ele que tem a responsabilidade de convencer o mundo.
Fazemos o que podemos, mas também temos de reconhecer perante Deus que isso não é suficiente. É Ele que tem de suprir o que nos falta. É o Espírito Santo que se apodera das nossas palavras, das nossas amizades, das nossas conversas, e as transforma em instrumentos de conversão. E nós devemos acreditar nisto de todo o coração. Deus quer fazê-lo mais do que nós o queremos fazer. E só Ele o pode fazer, por mais comités que formemos ou programas que concebamos.
Se alguma vez começarmos a ficar com os louros dos frutos, falharemos. Mas se nos entregarmos completamente, fizermos o que está ao nosso alcance - sermos práticos, pessoais e sensíveis - e, acima de tudo, sobrenaturalizarmos os nossos esforços naturais através da oração, então, e só então, Deus receberá toda a glória.